MANUEL BANDEIRA (Recife, 1886 — Rio de Janeiro, 1968)

“A voz do poeta, seu jogo de inflexões, seu acento de emoção nesta ou naquela palavra podem esclarecer muita coisa que no poema nos parece obscuro, hermético. De minha parte, posso dizer que só compreendi em maior profundidade os poemas de Eliot e Dylan Thomas depois de os ouvir recitados por eles próprios.” - M. Bandeira

* Baixe AQUI os poemas.

Material de referência:
1. "50 poemas de Manuel Bandeira escolhidos pelo autor" - Cosac Naify, 2006. A edição deste livro é acompanhada de um CD com 25 poemas lidos pelo próprio Bandeira para o selo Festa de Irineu Garcia nos anos de 1950/60.

2. "Manuel Bandeira: O Poeta em Botafogo" - CD, 2005. Gravações inéditas feitas por Bandeira em 1967 na casa do diplomata Lauro Moreira.



BOI MORTO [Opus 10, 1952]

Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o boi morto,

Boi morto, boi morto, boi morto.

Árvores da paisagem calma,
Convosco – altas, tão marginais! –
Fica a alma, a atônita alma,
Atônita para jamais.
Que o corpo, esse vai com o boi morto,

Boi morto, boi morto, boi morto.

Boi morto, boi descomedido,
Boi espantosamente, boi
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ninguém sabe. Agora é boi morto,

Boi morto, boi morto, boi morto.



MAÍSA
[Louvações, 1966]

Um dia pensei um poema para Maísa
“Maísa não é isso
Maísa não é aquilo
Como é então que Maísa me comove me sacode me buleversa me hipnotiza?

Muito simplesmente
Maísa não é isso mas Maísa tem aquilo
Maísa não é aquilo mas Maísa tem isto
Os olhos de Maísa são dois não sei quê dois não sei como diga dois Oceanos Não-Pacíficos

A boca de Maísa é isto isso e aquilo
Quem fala mais em Maísa a boca ou os olhos?
Os olhos e a boca de Maísa se entendem os olhos dizem uma coisa e a boca de Maísa se condói se contrai se contorce como a ostra viva em que se pingou uma gota de limão
A boca de Maísa escanteia e os olhos de Maísa ficam sérios meu Deus como os olhos de Maísa podem ser sérios e como a boca de Maísa pode ser amarga!
Boca da noite ( mas de repente alvorece num sorriso infantil inefável )”

Cacei imagens delirantes
Maísa podia não gostar
Cassei o poema.

Maísa reapareceu depois de longa ausência
Maísa emagreceu
Está melhor assim?
Nem melhor nem pior
Maísa não é um corpo
Maísa são dois olhos e uma boca

Essa é a Maísa da televisão
A Maísa que canta
A outra eu não conheço não
Não conheço de todo
Mas mando um beijo para ela.



BERIMBAU [O Ritmo Dissoluto, 1924]

Os aguapés dos aguaçais
Nos igapós dos Japurás
Bolem, bolem, bolem.
Chama o saci: – Si si si si!
– Ui ui ui ui ui! uiva a iara
Nos aguaçais dos igapós
Dos Japurás e dos Purus.

A mameluca é uma maluca.
Saiu sozinha da maloca –
O boto bate – bite bite...
Quem ofendeu a mameluca?
– Foi o boto!
O Cussaruim bota quebrantos.
Nos aguaçais os aguapés
– Cruz, canhoto! –
Bolem... Peraus dos Japurás
De assombramentos e de espantos!...



VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA [Libertinagem, 1930]

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei em pau de sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
– Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.



EVOCAÇÃO DO RECIFE [Libertinagem, 1930]

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois – Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância

A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:

Coelho sai!
Não sai!

À distância as vozes macias das meninas politonavam:

Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)

De repente
nos longes da noite
um sino

Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo

Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do dr. Fulano de Tal)
Atrás da casa ficava a rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido

Capiberibe
– Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento



Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras



Novenas
Cavalhadas
Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
– Capibaribe


Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam

Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade

Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.

Rio, 1925.



PROFUNDAMENTE [Libertinagem, 1930]

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

– Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente

*

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci


Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?


– Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

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