FERREIRA GULLAR

(São Luiz do Maranhão, 10 de setembro de 1930)

Material de referência sonora:
1. "Antologia Poética"
Som Livre; Rio de Janeiro, 1979.

"Acredito que todo poeta gostaria que seus poemas chegassem às pessoas levados por sua própria voz porque a voz humana, a fala, é a matéria natural da poesia. Todo mundo sabe que, antes de haver linguagem escrita, já havia poesia. É verdade que a página impressa, inicialmente veículo do poema, terminou por somar-se à expressão poética e o poeta passou a explorar os recursos próprios a esse novo meio. Toda uma expressão poética se originou daí. Mas a poesia verdadeira nunca se desligou da fala, que é a linguagem viva manando permanentemente das pessoas, se renovando e se reinventando no dia a dia. Eu gosto de dizer meus poemas e estou contente de saber que agora, gravados em disco, as pessoas poderão ouvi-los saindo de minha própria boca." Ferreira Gullar



mar azul [O vil metal, 1954-60]


mar azul marco azul
mar azul marco azul barco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul



VIDA, [O vil metal, 1954-60]

a minha, a tua,

eu poderia dizê-la em duas

ou três palavras ou mesmo

numa

corpo

sem falar das amplas

horas iluminadas,

das exceções, das depressões

das missões,

dos canteiros destroçados feito a boca

que disse a esperança

fogo

sem adjetivar a pele

que rodeia a carne

os últimos verões que vivemos

a camisa de hidrogênio

com que a morte copula

(ou a ti, março, rasgado

no esqueleto dos santos)

Poderia escrever na pedra

meu nome

gullar

mas eu não sou uma data nem

uma trave no quadrante solar

Eu escrevo

facho

nos lábios da poeira

lepra

vertigem

cona

qualquer palavra que disfarça

e mostra o corpo esmerilado do tempo

câncer

vento

laranjal




A VIDA BATE [Dentro da noite veloz, 1962-75]


Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
— a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,
o sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
Alguns viajam, vão
a Nova York, a Santiago
do Chile. Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega, detrás
de balcões e de guichês.
Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem
e há os que se perdem por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome
de vida!

O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas. És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina.

(3/2/66)



VERÃO [Dentro da noite veloz, 1962-75]

Este fevereiro azul
como a chama da paixão
nascido com a morte certa
com prevista duração

deflagra suas manhãs
sobre as montanhas e o mar
com o desatino de tudo
que está para se acabar.

A carne de fevereiro
tem o sabor suicida
de coisa que está vivendo
vivendo mas já perdida.

Mas como tudo que vive
não desiste de viver,
fevereiro não desiste:
vai morrer, não quer morrer.

E a luta de resistência
se trava em todo lugar:
por cima dos edifícios
por sobre as águas do mar.

O vento que empurra a tarde
arrasta a fera ferida,
rasga-lhe o corpo de nuvens,
dessangra-a sobre a Avenida

Vieira Souto e o Arpoador
numa ampla hemorragia.
Suja de sangue as montanhas,
tinge as águas da baía.

E nesse esquartejamento
a que outros chamam verão,
fevereiro ainda em agonia
resiste mordendo o chão.

Sim, fevereiro resiste
como uma fera ferida.
E essa esperança doida
que é o próprio nome da vida.

Vai morrer, não quer morrer.
Se apega a tudo que existe:
na areia, no mar, na relva,
no meu coração — resiste.




DOIS E DOIS: QUATRO
[Dentro da noite veloz, 1962-75]

Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena

Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena

como é azul o oceano
e a lagoa, serena

como um tempo de alegria
por trás do terror me acena

e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

— sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena

mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.



MEU POVO, MEU POEMA
[Dentro da noite veloz, 1962-75]

Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova

No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar

No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro

Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil

Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta

2 comentários: