O Alfabeto Enfurecido

No dia 8, às 19h, inaugura a exposição O Alfabeto Enfurecido na Fundação Iberê Camargo. A mostra, que foi organizada pelo MoMA e já passou pelo Reina Sofia, traz obras de dois artistas em que questões relacionadas a linguagem atravessa toda a obra: Mira Schendel e Leon Ferrari. Os dois não chegaram a se conhecer, mas suas obras tem um diálogo estético. Os dois usam o texto como gesto e como grafismo. Mais informações sobre a exposição, podem ser encontradas aqui.

Bom, te agenda e vai lá. Afinal, não é sempre que podemos fazer associações legais entre as áreas.


Abaixo, leia o texto do curador:

A obra de Mira Schendel e León Ferrari, contemporâneos ainda que originários de locais distantes entre si – Schendel nasceu na Suíça em 1919 e morreu no Brasil em 1988; Ferrari nasceu em 1920 na Argentina, onde ainda reside – está permeada, mesmo em seus momentos mais silenciosos e íntimos, pelo furor da linguagem. Um furor protéico que, em ambos, assumiu incontáveis faces, desde a mudez voluntária até a afasia, passando pelo sussurro, a súplica, a denúncia, a oração, a didática, o diálogo, a citação, a poesia, a gagueira, o grito, a onomatopéia, a colagem, a argumentação, o alfabeto. Ambos os artistas sempre se mantiveram muito próximos da poesia e dos poetas – Haroldo de Campos, no caso de Mira Schendel; Rafael Alberti, no de León Ferrari –, e ambos, em algum momento, foram poetas.

Os anos cruciais do surgimento da obra de Schendel e Ferrari coincidem com o início da década de 1960 e, para ambos, talvez o ano de 1964 tenha sido um marco. Foi então que León Ferrari produziu o Cuadro Escrito, após intensa prática de desenho que o levou da abstração às escritas deformadas e ilegíveis, e destas à requintada caligrafia, não menos hermética, dos desenhos escritos. Nesse mesmo ano, Mira Schendel inicia uma temporada de trabalho exclusivamente dedicada a obras sobre papel – utilizando sempre o mesmo suporte: folhas retangulares de papel de arroz –, durante a qual irá produzir imensa quantidade de desenhos, para os quais concebeu uma técnica pessoal de aplicação da tinta e do gesto, e que vai se encerrar, no final da década de 1960, com a criação de obras emblemáticas, como as Droguinhas (c.1965-68), o Trenzinho (1965) e os Objetos Gráficos (1968-73).



Esses anos coincidem também, no mundo anglo-saxônico e norte-americano, com o surgimento de uma forma de arte oposta à noção de gênero artístico: uma arte sem medium específico, ou que se furta à possibilidade de ser apreendida desde a perspectiva da especificidade de seu medium, uma arte na qual, como diz Sol LeWitt, “a ideia ou o conceito é o aspecto mais importante da obra”[1]: a arte conceitual. Desde o seu aparecimento, o discurso autorizado da arte conceitual estava focado no que se tornaria um de seus mitos originários, o tema da desmaterialização do objeto artístico que estava implícito no conceitualismo.

Talvez o que distinga a obra tanto de Schendel como de Ferrari do conceitualismo seja precisamente o fato de que, enquanto este propõe uma arte centrada na linguagem como protagonista ideal, Schendel e Ferrari são artistas mais interessados no aspecto da linguagem, cujos trabalhos manifestam e mostram a linguagem encarnada e vinculante, a linguagem como materialidade escrita e vestígio, a linguagem como tremor de mão e estremecimento de corpo: a linguagem estremecida, como sujeito irrepetível e voz vicária.

Ferrari e Schendel são artistas visuais que jamais abandonam o ofício do verbo; pelo contrário, eles o colocam no âmago da operação produtora de imagens, até mesmo daquelas mais despojadas e silenciosas. Todavia, além de uma questão de linguagem, o que se manifesta em suas obras, até mesmo naquelas em que não se pode identificar a matéria linguística, é justamente a escrita no sentido barthesiano de scription, o “ato muscular de escrever, de traçar as letras”[2], a sua radical redução material, e, portanto, a sua capacidade para funcionar na imagem como representação visual da enunciação. Assim, não é apenas a linguagem o que constitui o nervo da obra desses dois artistas, mas a palavra como função vicária e excedente da voz humana; não são frases neutras e desprovidas de sujeito que qualquer um possa pronunciar de modo impessoal – como se a língua fosse uma forma de transparência – o que sobressai na obra deles; são textos opacos, signos feridos, fragmentados, obsessivos, ou então letras abandonadas, delirantes, solitárias; não é a língua, enfim, o que ali brilha, mas a escrita, abstrata ou textual, alfabética ou arquitetônica, deformada ou ínfima, nominal ou transitiva e, acima de tudo, a matéria de seu corpo: o gesto gráfico.

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Se os desenhos abstratos constituem um dos principais momentos de caráter estético na obra de León Ferrari, os seus desenhos escritos são o suporte de conteúdos e discursos objetivos com os quais o artista chama a atenção para o mundo e suas contradições e absurdos, reflexiona sobre a arte e dirige o seu sarcasmo contra os poderes constituídos da Igreja e do Estado. Em nenhum deles chega a haver violência, nem sequer a fúria e o protesto de trabalhos posteriores e produzidos em confronto com a trágica história argentina, que também golpearia cruelmente a sua família. Não obstante, cabe pensar que o período inaugurado com obras como o Sermón de la Sangre – uma abstração que oculta em sua mudez um texto alheio, no caso de autoria de Rafael Alberti – chegará a seu termo, pouco antes de Ferrari abandonar por um tempo a produção de objetos artísticos, com a exibição (e o repúdio público) de uma imagem de Cristo crucificado em um avião bombardeiro americano, La Civilización Occidental y Cristiana (1965), um gesto de protesto político contra a guerra no Vietnã. No breve período de 1962 a 1965, Ferrari produz a maior parte de seus desenhos abstratos, como Músicas, Escrituras Deformadas e Cartas a un General; as esculturas com arame e caixas, e os desenhos com escrita, como o Cuadro Escrito.



Por meio de obras nas quais a escrita toma o lugar da imagem, Ferrari e Schendel não deixaram de produzir uma constante suspensão da imagem em benefício do que resta da linguagem quando esta é tratada como corpo: o gesto que vincula e desvincula na corporeidade gráfica, a vinculação da linguagem, sua configuração constelada pré-linguística, uma arte de alfabetos sem gravidade, arbitrários, e de palimpsestos; letras e palavras desprendidas e desorbitadas. Um gesto no qual se faz visível, sobretudo em Schendel, o substrato vazio e mudo onde se alojaram os signos e onde poderiam de novo habitar como potência incessante: o papel, suas estrias, seus desertos. Assim é possível entender as Droguinhas e o Trenzinho, as duas grandes obras que encerram a produção sobre papel de Mira Schendel. Nas primeiras sobressai a complexidade do precário, e também uma arqueologia insondável que concerne de perto a escrita, a suas origens míticas e a seus repúdios originários: um repertório de cordas e ataduras de papel, laços que nada enlaçam além deles mesmos. No Trenzinho, por sua vez, o corpo imaculado é exposto como um despojo, a tabula rasa do papel que antes acolhia as manchas do escrito, apresentando a sua própria nudez frontal, seu próprio vazio, sob a forma de véus e sudários.



A função alternada ou simultânea de indicação e de ocultação está na base das obras de León Ferrari e Mira Schendel. Opondo-se à neutralidade das operações linguísticas que caracterizam o cânone da arte conceitual, o que prevalece em Ferrari e em Schendel é uma forma de linguagem apropriada, encarnada, personalizada, uma linguagem-corpo – “aquilo que aponta com o dedo a coisa de que se fala”, no dizer dos tratadistas de Port-Royal – e, ao mesmo tempo, o corpo da linguagem. Em vez da fascinação linguística da arte conceitual, que encontrou na linguagem o sucedâneo artificial de uma imaterialidade impossível, Ferrari e Schendel parecem ter trabalhado a contrapelo daquela afirmação de Merleau-Ponty, “a maravilha da linguagem é que ela se faz esquecer”. Ou seja, uma obra na qual a significação dos signos não nos deixa esquecer seu aspecto físico, mas que, ao contrário, nos confronta com sua presença opaca. Durante toda a sua vida de artistas, Mira Schendel e León Ferrari parecem ter se empenhado em restituir a letra à voz, a voz a seu alento, o alento a seu corpo, o corpo ao seu gesto, e o gesto, por fim, à sua vida.


Luis Pérez-Oramas


Notas

1. Sol LeWitt, “Paragraphs on Conceptual Art” (1967), in Alexander Alberro e Blake Stimson (eds.), Conceptual Art: A Critical Anthology (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1999), p. 12.
2. Ver Roland Barthes, “Variations sur l’écriture”, in Oeuvres complètes, vol. 4: 1972-1976 (Paris: Seuil, 2002), p. 267.

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