BECKETT E A INCÔMODA LUCIDEZ

Entrevista bacana sobre Beckett do site Centopéia:
http://www.centopeia.net/entrevista/ana_helena.php

BECKETT E A INCÔMODA LUCIDEZ
Por Sérgio Medeiros*
Florianópolis, 27 de setembro de 2009

Ana Helena Souza é a principal tradutora da prosa de Samuel Beckett hoje no Brasil. Sua excelente tradução de O inominável, obra-prima do escritor e dramaturgo irlandês, foi recentemente publicada pela editora Globo, São Paulo. Em 2003, Ana Helena Souza já havia assinado a tradução do desconcertante Como é (Iluminuras, São Paulo), texto sem pontuação de Beckett, e, em 2006, lançou um ensaio sobre o seu processo tradutório, A tradução como um outro original (Iluminuras, São Paulo), dando inestimável contribuição a uma área de estudos cada vez mais respeitada no Brasil. Sabemos que Beckett foi um autor-tradutor que transitou entre duas línguas, o inglês e o francês, tornando indissociáveis, no seu trabalho de escritor, a criação e a tradução. É um dos temas da entrevista que publicamos a seguir.


1. Você acaba de traduzir "O inominável". Sabemos que Beckett escreveu essa obra em francês e depois a traduziu para o inglês. Você partiu do francês, exclusivamente, ou consultou também a versão inglesa? Haveria diferenças entre elas?
Nesta tradução, usei o texto em francês e, como fiz nas minhas traduções anteriores, consultei paralelamente o outro texto. Beckett é um maravilhoso recriador das suas obras. Isso significa que, na maioria das vezes, as soluções encontradas por ele parecem adequar-se perfeitamente à outra língua, seja o francês ou o inglês. Como resultado, temos um par de textos mais ou menos semelhante, dependendo do grau de liberdade empregado na recriação de cada trecho. Às vezes, há grande proximidade entre o francês e o inglês; às vezes, as intervenções são maiores e é aí que se encontra uma das marcas do autor-tradutor, que é capaz de eliminar algumas passagens ou substituir referências, por exemplo. Outra característica importante é a diferença de tom entre os textos, que é bem mais difícil de explicar, mas é o que torna singulares as “traduções” de Beckett. Penso que é a esse tom que o tradutor deve se manter fiel, ao escolher o texto-fonte, sem esquecer, é claro, o outro texto, que se constitui num poderoso recurso de interpretação durante o processo tradutório. Na minha experiência, traduzir Beckett dessa maneira é bastante enriquecedor para quem traduz e, se formos felizes, para a tradução.

2. O que representa esse romance na carreira de Beckett prosador? O ponto culminante? O que o diferencia, por exemplo, de "Molloy", também traduzido por você?
O inominável é o último dos três romances escritos por Beckett em francês, no pós-guerra, a que a crítica convencionou chamar de primeira trilogia. Os três romances, Molloy e Malone morre, publicados em 1951, e O inominável em 1953, obtiveram reconhecimento imediato da melhor crítica francesa da época – basta dizer que Molloy foi resenhado por Bataille e O inominável por Blanchot. Acho que o impacto causado por esses romances e a consequente proliferação de material crítico sobre eles diz da sua importância. No entanto, não poderia colocar O inominável como ponto culminante da obra em prosa de Beckett, pois seus desdobramentos são extremamente ricos e interessantes. Por outro lado, acho que esse livro leva ao ápice o que Beckett vinha fazendo em ficção, desde a composição das Novelas diretamente em francês. De maneira muito breve, diria que a diferença entre Molloy e O inominável é a que reside na radicalização da auto-consciência com que Beckett dota os seus narradores. É essa auto-consciência que vai filtrar as percepções e pôr em xeque a validade de qualquer representação aventada. Desde as observações sempre reformuladas – às vezes até diretamente negadas, depois de registradas – de Molloy, passando pelas ficções implodidas de Malone, até atingir a magnífica fragmentação do narrador sem nome. Nesse sentido, O inominável é o ponto culminante dessa fase. Tanto que com ele Beckett parece ter experimentado um impasse na prosa que só seria quebrado dez anos depois com a publicação de Como é.

3. Beckett escreveu, no final da vida, outra trilogia, muito mais breve, na qual, parece-me, as distinções entre ficção e teatro (ou cinema) se tornaram confusas... e surpreendentes. Poderia comentar?

Sim. Sem dúvida. Gosto muitíssimo dessa segunda trilogia. Daí a minha reticência em colocar O inominável como ponto culminante da prosa de Beckett. A experimentação que Beckett desenvolve ao longo dos anos 60 e 70 leva a um apagamento das linhas divisórias entre o teatro e a prosa – veja-se a peça Ohio Impromptu – e, diria até, entre teatro e poesia, no caso da peça Rockaby. Já na prosa, textos como Companhia (1980) e Mal visto mal dito (1981) – que são os dois primeiros da chamada segunda trilogia –, apesar de curtos, são de uma complexidade impressionante. Mal visto mal dito, por exemplo, lança mão de procedimentos narrativos que guardam algumas semelhanças com rubricas teatrais ou com roteiros de cinema. De qualquer modo, a composição de imagens, como elemento dramático nessa prosa, é fundamental. E Worstward Ho (1983), último dessa trilogia, foi escrito numa linguagem tão concentrada, tão afim com o trabalho poético, que o próprio Beckett se recusou a traduzi-lo para o francês, pois achava que não encontraria meios de produzir um equivalente à altura do texto em inglês.


4. Você também traduziu "How it is" // "Comment c'est", outro texto radical. Poderia comentar a relação desse texto com "O inominável"?


Como é tem uma singularidade em relação a todos os outros textos em prosa de Beckett: é composto sem quaisquer marcas de pontuação. Isso faz com que o ritmo seja um elemento essencial para a sua compreensão e, consequentemente, requer do leitor uma participação muito ativa. Ele terá de decidir onde fazer as pausas, ele terá de encontrar o ritmo da leitura. A relação com O inominável se dá por meio do desenvolvimento do tema das vozes e da vítima, da necessidade que o narrador tem de falar e de alguém que o escute (discuto isso mais detalhadamente na minha leitura de Como é, no livro A tradução como um outro original). O que existe entre Como é e O inominável é, digamos, uma aproximação suficiente para estabelecer uma ligação temática entre as obras e uma ruptura, também suficiente, para impulsionar a continuidade da criação ficcional beckettiana.


5. Afinal, os longos monólogos que lemos nos romances de Beckett denunciam, da perspectiva dos personagens, o absurdo de um discurso infinito ou revelam, ao contrário, grande lucidez no manuseio da linguagem?

Ambos, apesar de esse absurdo e essa lucidez precisarem ser mais bem definidos. Embora a lucidez dos personagens esteja ligada exatamente aos limites do uso da linguagem para dar conta das experiências de comunicação – entre as quais se inclui a comunicação ficcional, como bem explica Wolfgang Iser –, ela aparece por meio da característica da negatividade tão presente no discurso dos narradores. Vejam-se as famosas frases finais de Molloy. Paradoxalmente, é essa negatividade que suscita a produção sem fim do discurso. A linguagem não abarca a experiência, falsifica-a (Molloy); as ficções também não podem ser vistas como confiáveis (Malone morre), ambas – linguagem e ficções – não alcançam sequer nomear o sujeito que a elas recorre, pois os significados recebidos culturalmente vão ruindo à medida em que se tenta construir algo com eles. Como representar um “eu” ao qual só se pode ter acesso mediante uma linguagem aprendida, da qual aquele mesmo “eu” não pode escapar? Como garantir que ela não falseia tanto quanto as ficções que cria? Seja por ter consciência da incapacidade de acesso profundo às experiências alheias, seja, em última instância, pela impossibilidade de chegar à realidade do próprio eu, os narradores de Beckett fazem surgir o absurdo da sua condição. É também por não se deixarem enganar quanto à impossibilidade de ter a experiência última do desconhecido – a do fim – que, a partir mesmo da consciência da sua impotência e finitude, deslancham esse discurso altamente produtivo. Uma lucidez incômoda, sem dúvida, mas ampliadora.

*Sérgio Medeiros é tradutor e ensaísta e publicou, entre outros, o livro de poesia em prosa O sexo vegetal (Iluminuras, São Paulo, 2009). Ensina literatura na UFSC.

Nenhum comentário:

Postar um comentário