Religião e Estado

Texto de Terry Eagleton no Caderno Cultura, da Zero Hora deste sábado (7 ago 2010):


Os supremacistas liberais
O teórico britânico Terry Eagleton, conferencista desta segunda-feira no ciclo Fronteiras do Pensamento, polemiza com os neoateístas Richard Dawkins, Martin Amis e Christopher Hitchens

Gostemos ou não, Richard Dawkins, Martin Amis, Christopher Hitchens e companhia se tornaram instrumentos da guerra ao terror.

Um efeito colateral da assim chamada guerra ao terror foi uma crise do liberalismo. Esta não é apenas uma questão de alarmante legislação iliberal, mas um problema mais geral de como o Estado liberal lida com seus inimigos antiliberais. Isso, certamente, é o teste ácido para qualquer credo liberal. Qualquer um pode ser tolerante com aqueles que são tolerantes. Uma comunidade de mentes abertas é um lugar aprazível, mas não requer nenhum grande esforço moral. A questão chave é como o Estado liberal trata aqueles que rejeitam a sua moldura ideológica. Está na moda hoje falar de se abrir para o “Outro”. Mas o que fazer se o Outro detesta sua abertura tanto quanto as suas danceterias?

Não há disputa sobre como tratar aqueles cujo desprezo pelos valores liberais tomam a forma de explosão de pernas de crianças pequenas. Eles precisam ser trancafiados. Mas socialistas, assim como islâmicos, rejeitam o Estado liberal, então o que se deve fazer com eles? São tolerados apenas até desafiarem com sucesso o Estado, quando então se encontrarão também atrás das grades com os militantes da Al Qaeda?

Não se trata, evidentemente, de que a esquerda rejeite as liberdades civis: o movimento dos trabalhadores lutou para assegurar muitas delas. Marx tinha viva admiração pelo grande legado revolucionário do liberalismo da pequena burguesia. Mesmo assim, há um conflito fundamental entre liberais e esquerdistas. O liberalismo sustenta que o Estado deveria tolerar qualquer opinião que não procure minar a própria tolerância. Esse é um tipo irônico de política. Como Tony Blair advertiu: “Nossa tolerância é parte do que faz a Grã-Bretanha Grã-Bretanha. Conforme-se com isso ou não venha para cá”. Se isso é comicamente contraditório ou abertamente paradoxal depende da sua visão do Estado liberal.

Esse Estado não está muito incomodado com aquilo em que você acredita, desde que isso não afete o direito de outros de ter suas convicções. Uma visão mais cínica é a de que o capitalismo avançado é inerentemente desprovido de fé; desde que você pague seus impostos e evite bater em policiais, suas opiniões pouco importam aqui ou lá. O agnosticismo propagado por Richard Dawkins e Christopher Hitches como matéria subversiva é parte da rotina diária do capitalismo tardio. O Estado liberal não tem visão sobre se bruxaria é mais válida do que assovio. Como um fiscal cauteloso, ele tem o mínimo possível de opinião. Muitos liberais suspeitam que convicções apaixonadas são autoritárias em latência. Mas o liberalismo deveria certamente ser uma convicção apaixonada. Liberais não são necessariamente covardes. Apenas o mais macho dos esquerdistas suspeita que eles não têm culhões. Você pode ser ardentemente neutro, ou atentamente indiferente.

Qualquer liberal honesto, porém, reconhecerá que a neutralidade do Estado é uma forma de partidarismo. Deveria haver laissez-faire no reino das convicções, assim como no mercado. A esquerda faz objeção à tese liberal não porque acredite em esmagar os que divergem, ou desgoste da ideia de um Estado partidário, mas porque essa tese rejeita o tipo de Estado partidário que o socialismo exige. Rejeita, por exemplo, o Estado que não seria neutro em relação à disputa sobre se a cooperação ou o individualismo deveriam reinar supremos na vida social e econômica.

Se o teste do liberalismo é como ele confronta seus adversários iliberais, alguns na intelligentsia liberal parece ter caído no primeiro golpe. Escritores como Martin Amis e Christopher Hitchens não querem apenas expulsar terroristas. Eles também brandem um ramo do supremacismo cultural ocidental. Dawkins se opõe fortemente à invasão do Iraque, mas prega um autossatisfeito e antiquado racionalismo Whig que poderia ser utilizado contra o Islã. O filósofo A. C. Grayloing tem uma visão igualmente míope da marcha do Progresso Ocidental. O romancista Ian McEwan é um jovem campeão recrutado por seu racionalismo militante. Hitchens e Salman Rushdie defenderam as diatribes de Amis contra os muçulmanos. Gostem ou não, Dawkins e sua turma se tornaram armas na guerra ao terror. O supremacismo ocidental gravitou da Bíblia para o ateísmo.

A ironia é clara. Alguns de nossos espíritos livres literários estão defendendo valores liberais de maneiras que ameaçam miná-los por dentro. Nisso, refletem o comportamento dos Estados ocidentais. Espera-se que liberais valorizem análises nuançadas e complexidade moral, nenhuma das quais transparece na maliciosa redução do Islã a um culto bárbaro e sangrento. Eles são notados por suas discriminações judiciosas, mais do que pelo airoso desprezo por toda religião como tal lixo. Há também um legado honorável de julgamentos qualificados e absolutos com um alerta de contexto: o liberal genuíno está chocado com o terrorismo islâmico, mas consciente da injúria nacional e humilhação que subjaz nele. Nenhum dos escritores que mencionei é notável por esse juízo equilibrado. Em síntese, eles estão mais preocupados com a liberdade de expressão do que com a liberdade em relação ao domínio imperial.

Há uma ironia ou paradoxo construído no pensamento liberal: você deve ser claramente intolerante em relação a ataques contra a tolerância. Mas essa ironia está em perigo perpétuo de caducar. Para o Estado liberal, acomodar-se à diversidade de crenças e manter poucas convicções positivas é uma das mais admiráveis conquistas da civilização. Mas essa neutralidade, uma vez sob pressão, pode facilmente degenerar em superioridade, enquanto ser tolerante em relação à fé de outras pessoas se torna algo como pairar desdenhosamente sobre ela. Há, assim, um pequeno passo da superioridade ao supremacismo.

Teórico da literatura, autor de Teoria da Literatura: Uma Introdução (Martins Fontes, 2006), professor nas universidades Nacional da Irlanda, de Lancaster (Grã-Bretanha) e de Indiana (Estados Unidos). Especial para The Guardian

POR TERRY EAGLETON

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