Manoel de Barros

Hoje, no Som & Sentido, foi a vez de ouvir texto do grande Manoel de Barros


MANOEL DE BARROS (Cuiabá, 19.12.1916) 

Material de referência sonora: "Manoel de Barros por Pedro Paulo Rangel e Manoel de Barros" — produzido por Paulinho Lima para o selo "Luz da Cidade"; Rio de Janeiro, 2002.

Bibliografia [poesia]:
— [1937] Poemas concebidos sem pecado — [1942] Face imóvel— [1960] Compêndio para uso dos pássaros — [1966] Gramática expositiva do chão— [1970] Matéria de poesia — [1980] Arranjos para assobio— [1985] Livro de pré-coisas — [1989] O guardador das águas— [1991] Concerto a céu aberto para solos de ave — [1993] O livro das ignorãças— [1996] Livro sobre nada — [1998] Retrato do artista quando coisa— [2000] Ensaios fotográficos — [2001] Tratado geral das grandezas do ínfimo— [2004] Poemas Rupestres — [2010] Menino do Mato

Confira os textos que foram ouvidos:

1ª parte, Uma didática da invenção — VII [de O LIVRO DAS IGNORÃÇAS, 1993]

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz:
Eu escuto a voz dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que á a voz de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.



Caderno de andarilho — Retrato [de CONCERTO A CÉU ABERTO PARA SOLOS DE AVE, 1991]

Quando menino encompridava rios.
Andava devagar e escuro — meio formado em silêncio.
Queria ser a voz em que uma pedra fale.
Paisagens vadiavam no seu olho.
Seus cantos eram cheios de nascentes.
Pregava-se nas coisas quanto aromas.



Caderno de apontamentos — XIII. [de CONCERTO A CÉU ABERTO PARA SOLOS DE AVE, 1991]

Certas palavras tem ardimentos; outras, não.
A palavra jacaré fere a voz.
É como descer arranhado pelas escarpas de um serrote.
É nome com verdasco de lodo no couro.
Além disso é agríope (que tem olho medonho).
Já a palavra garça tem para nós um
sombreamento de silêncios...
E o azul seleciona ela!



3ª parte, Mundo Pequeno — I  [de O LIVRO DAS IGNORÃÇAS, 1993]

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas.
Seu olho exagera o azul.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
                              
                         Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos.



Caderno de apontamentos — XXVI [de CONCERTO A CÉU ABERTO PARA SOLOS DE AVE, 1991]

Depois que atravessarem o muro e a tarde os caracóis cessarão.
Às vezes cessam ao meio.
Cessam de repente, porque lhes acaba por dentro a gosma com que sagram os seus caminhos.
Vêm os meninos e os arrancam da parede ocos.
E com formigas por dentro passeando em seus restos de carne.
Essas formigas são indóceis de ocos.
Ah, como serão ardentes nos caracóis os desejos de voar!

P.S.: Caracol é uma solidão que anda na parede.

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