O texto que também me abraçou

Fui encarregada de mediar a discussão sobre o livro do Milton Hatoum, no nosso último encontro - junto com a Maria Eugênia. De uma série de leituras que me desagradaram, foi Cinzas do norte que me reconciliou com a literatura.

No encontro, queria que falássemos de várias coisas...
Da polifonia do romance - na presença de três discursos narrativos diferentes, que se alternam e constroem a trama com um equilíbrio perfeito no tom - a narração seca de Olavo, o relato derramado de tio Ram e as cartas reveladoras de Mundo.
Queria que falássemos do regionalismo, na exaltação de características típicas da cultura amazônica e na projeção desses elementos regionais para um plano universal e em como há (ou não) uma desexotização da cultura amazônica em benefício da visão de alteridade.
Queria que falássemos da maestria narrativa de Hatoum, amarrando todas as pontas da(s) história(s), progredindo no ritmo narrativo, não deixando a bola cair nunca - um enredo bem sucedido, mais preocupado com a trama do que com a forma, daquele tipo que funciona, mas que parece meio esquecido na fragmentação narrativa da pós-modernidade.
E que falássemos da sutileza com que a ditadura é apresentada, um "quase-nada" para o leitor mais ingênuo, um convite à indignação para o leitor mais atento!
E dos personagens - de Olavo, aparentemente (mas só aparentemente) raso e superficial, e da complexidade de Alícia, a esposa submissa que nos surpreende com os amantes, com os vícios, com a ambiguidade, e mesmo de Jano e Mundo, que representam dois tipos bem específicos e que nem por isso são menos densos. 
E ainda da questão antiga, mas sempre atual, da arte x mercado, e o ser artista na contemporaneidade, e a arte é arte até quando? 

Mas a discussão meio que se perdeu - não falamos de (quase) nada disso e agora deixa pra lá...
Luís Roberto Amabile já disse muito do que eu queria dizer sobre o livro.

Termino citando Tezza também:
“Seres intercambiáveis, não estamos mais em lugar algum. Há quem ache isso interessante. Uma espécie de militarização da arte – soldados têm funções, não personalidade. O que cria um duplo fracasso do que seria uma prosa conceitual. Ou ela se realiza como conteúdo traduzido, a maldita mensagem, ou, a hipótese eventualmente melhor, como a demonstração fria de uma técnica. Tirou-se dela o componente da experiência do sujeito, ou a sua empatia, como a chave medular da arte literária.”
Nesse contexto, fico feliz por ainda existirem escritores como Hatoum - um modernista, que seja, como disse Silviano Santiago, e por mim, que venham mais modernistas nessa pós-modernidade em que vivemos... 

 

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