Apuro

Apuro

Alexandre Pandolfo




Em apuros estão todos os encantos do conforto estendidos ainda agora em direção à reconstituição do que foi e do não – do que passou e do que aconteceu num momento culminante e que gritou sem compreender as escavações que em seus asfaltos foram operadas contra os homens que fizeram e fazem ainda hoje Brasil, e frente aos quais, para os quais, a memória devolve o corpo conspurcado ao corpo conspurcado o cheiro do ralo como estatuto inverbal e como mais íntimo diário que não mais se contenta com as elucubrações afeitas à racionalidade hegemônica e capitalista, não mais afeita à racionalidade policial, à polícia do capital e ao genocídio em ato legitimado pelas instituições políticas todas, porque enquanto tudo é explorado, outrem contra todos não grita gol.



Enquanto azedam os democratas de plantão, chocados em seus centros filosóficos e neurofilosóficos para a democracia dos mais diversos matizes, e sempre para a manutenção estrutural do que sempre foi, enquanto azedam, os democratas de plantão mantém o alinhamento dos seus ponteiros com os ponteiros dos difusores moralistas de diversos meios de cooptação da massa, sem que ambos, todavia, possam chocar-se com a miséria brasileira e latinoamericana. Sem compreender e indo até o ponto de desprezar o estado de exceção em que vivemos foi descrito pelo entrevistado, o Secretário de Assuntos, um político cientista importante do meio, como um grande momento para falar contra os adversários, contra todos aqueles que se opõem ao progresso e que ficam apenas fixados nos debates rançosos e por demais radicais sobre a miséria da derrubada de inúmeras árvores nas redondezas da Usina. “Não é por vinte centavos, não é por vinte árvores, nem por cento e vinte mil crianças”, disse o Secretário, e concluiu, finalmente, que “nos países em que não existe uma emergência militar se cria uma”. Assim, a convicção apolítica à qual foram submetidas as manifestações políticas contribui para a esperança de que o colapso poderia ser evitado se fosse possível limpar todos aqueles que se sujaram com balas de borracha e armas de pimenta – primeiro limpá-los depois limpá-los do mapa, assim como as árvores. Fora do território, no meio do oceano, como manda a prática ancorada não apenas nos defensores do estado das coisas, mas nos defensores do estado e da polícia e do direito que se dá a ver também hoje, exatamente no momento em que as manifestações arranham as ruas tal qual se deu a ver como tragédia, no século XX, ocorre também hoje a marcha da família, contra a homossexualidade e os homossexuais, mas não é a mesma marcha contra a pedofilia de incontáveis padres da igreja hegemônica. Também não é a mesma a marcha do único marchante que marchava contra todas as suas convicções católicas marchava contra o papa, porque sabe das suas relações concupiscentes com a ditadura militar argentina e, obviamente, com a ditadura civil-militar brasileira que foi a mesma da Argentina assim como esta foi a mesma do Brasil e do Uruguai e do Chile. Novamente não é mais obnubilada a forma como a ditadura se apresenta hoje. Mas há sentido ficarmos falando sobre isso? Os aparelhos que sobrevivem à destruição do homem tal como parece ser o caso da filosofiabiomolecular e que registram os acontecimentos que muitas vezes não dispõem sequer de um peso em si mesmos, tais aparelhos que registram propagam e gravam usam toda a sua tecnologia contra o usuário quando lhe oferecem em voz alta e mesmo dentro de casa todas as respostas que seriam suficientes para amenizar diariamente a indignação. A rede tecnológica constitui-se de palavras como vândalo e baderneiro, repetidas indefinidamente, assim como se repetiu a palavra corrupção certamente esvaziada de sentido até que ela se tornou o próprio meio da cooptação. Mas devemos nos assombrar? A causa secreta do logro dessa mediação comunicacional e também desse oferecimento como resposta que, a bem dizer, “presenciamos”, se preserva estranhamente das intempéries e das fraturas que causam àqueles que foram às ruas. Não devemos sempre estar certos ao lado da boa língua falada. Frente ao domínio absoluto do uso da força e diante das práticas corriqueiras das instituições estatais para o controle dos corpos e das subjetividades às quais se entrega o movimento porque quer certamente com essas práticas se chocar contra e chocar aos outros com as práticas genocidas alimentadas pelo estado das coisas em que vivemos, frente a irrupção dos cadáveres dos cadáveres, tais como os cinco cadáveres encontrados, mas que não eram Amarildo, quem eram? – Afinal, como poderia o estado hoje manter o status quo se não pelo controle biométrico e bioeletroeletrônico? Tudo se entrega a isso. Em nome da lei anônima e convencidos de que palavras avulsas sobre o arquivo oficial são guardadas pelas empresas de comunicação em toda a sua alegre comicidade e desrespeito de quem não precisa se comprometer com o conteúdo incompreensível dessas manifestações que adorariam fossem apolíticas, fossem policiais, mas que de qualquer sorte rechaçam, e que não gostariam de se comprometer sequer com a sua própria história, principalmente com o recente período ditatorial, do qual também muitas famílias e muitos militares ainda herdam os frutos financeiros, pelo menos quase tantas famílias quantas não admitem que outros tantos quantos possam ganhar uma bolsa família, e que herdam frutos não imediatamente financeiros como as armais não-letais, e as bombas, os escudos e os choques e a segurança. Eles e elas também não se comprometem, como os políticos científicos, com o conteúdo incompreensível das marchas, nem com quaisquer coisas que a elas possam dizer respeito, a não ser, certamente com a vida dos seus autores principais, dos autores das ruas, os quais já não sabemos se vivem, mas que ainda que estejam mortos, devem ser conspurcados, bem como deve ser conspurcada toda a sua espécie, ainda que esteja extinta, o logos hegemônico em operação aqui também gostaria de conspurcar a memória desse processo de extinção. Não é de hoje que o progresso no Brasil faz mais vítimas do que uma guerra nuclear. Faz tempo que morrem mais crianças num ano na América Latina do que todas as vítimas de Hiroshima e Nagazaki. Como representantes de uma lei anônima, os marchantes pelo esquecimento repudiam de antemão todo o conteúdo dessas passeatas, mas não descartam nada que possa ameaçar a tranquilidade contemplativa das suas coisas e das coisas trêmulas que ainda são visíveis diante de nós, que pulverizam para muitos lados e por isso também para o lado da última justificação do que tem sido o vitorioso empreendimento a fim de lograr o medo e continuar assegurando a integridade dos níveis de dominação e assujeitamento com os quais nos deparamos hoje. Condensados numa matéria inapreensível embora de todo evidente, é surpreendente que eventos tais como os que presenciamos desde junho de 2013 ocorram no momento histórico em que o Brasil procura elaborar o seu passado recente, a ditadura civil-militar que torturou e assassinou inúmeras pessoas em toda a América Latina e que ainda hoje se apresenta em contornos nítidos em muitos setores da sociedade?* 



* Escrita inspirada nos acontecimentos de junho de 2013 e na leitura e discussão do livro "História Natural da Ditadura", de Teixeira Coelho

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