Mais Suassuna

Texto de Ricardo Barberena sobre Ariano Suassuna, publicado no jornal Zero Hora, de 16/6/2007.


O reino pedregoso de Suassuna

Lembro-me do contraste entre o respeitoso silêncio e as sonoras gargalhadas numa tarde no Salão de Atos da UFRGS. Tratava-se da aula inaugural do ano de 1996. O motivador desses espasmos de comicidade e admiração era Ariano Suassuna. Como se fosse um Quixote sertanejo, o escritor hipnotizou uma platéia de quase dois mil alunos com a sua técnica de encantamento que remonta aos primórdios da experiência literária: a arte de narrar histórias.

Nessa atmosfera de oralidade impregnada de sentidos míticos e mágicos anticartesianos, perpetua-se um espírito poético oriundo do cordel nordestino que introduz um sertão sonhoso e brutal. Suassuna instaura uma enigmática territorialidade na qual emergem deuses e diabos, sob a lei do acaso e da fatalidade. Esses seres-ameaçadores resultam de um sopro de imaginação que produz sentidos desérticos e espinhentos de uma terra-fera: o reino sertanejo do delírio e do sacrifício. Enraizada numa sagração onírica, a narrativa também propõe um diálogo entre o Nordeste e a Península Ibérica através de um audacioso projeto estético que intercambia a poesia oral com as imagens e os sons armoriais. Herdeiro da heráldica medieval, o Movimento Armorial nasce com o objetivo de salvaguardar um manancial de insígnias, brasões e bandeiras que constituem a força imagística da cultura popular (dos estandartes de maracatus às bandeiras de clubes de futebol). Ariano acabou desencadeando uma nova conceptualidade no interior da arte brasileira que navega entre iluminuras arabescas e acordes de rabeca. O escritor paraibano busca uma abertura de significados que convidam o leitor a reconstruir uma tradição literária marcada por uma cosmovisão de elementos híbridos e (pluri) historiográficos: o texto cômico de Plauto, os figurantes da commedia dell'arte, as histórias coletivas da falação cotidiana.

O Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, publicado em 1971, talvez seja o mais audacioso livro de Suassuna. A obra se configura como uma epopéia satírica e apocalíptica, constituída por alucinações e desventuras de uma espécie de cronista-fidalgo (Pedro Dinis Ferreira Quaderna). O romance-memorial-poema-folhetim se apresenta dividido em folhetos que focalizam a prometida volta de dom Sebastião por meio de um banho de sangue nas pedras do Reino sertanejo. Na crueza espinhenta e indomada da ressurreição do mito, nasce a esperança da contemplação de um reino presentificado por duas enormes pedras onde pingos prateados brilham ao sol. Como esfinges a serem decifradas, as pedras trazem consigo o mistério nordestino de uma metamorfose visceral: como o fraco se torna forte, como o real se torna fantasia, como a memória se torna lenda. Segundo Quaderna, "Deus fala por meio das pedras". Assim, é preciso que ouçamos esse pedregoso discurso que brota da tênue separação entre a anedota tragicômica e o lamento da desesperança lírica. Os enigmas do Reino estão camuflados nas pedras que resistem ao tempo, simbolizando a força de uma cultura armorial-popular brasileira que, formada pelo sangue dos seus heróis, profetas e santos, permanece renovada na escrita de Ariano. Entre o riso, o sonho e o desvairio, evidencia-se, portanto, a representação de uma brasilidade que mergulha num mundo maravilhoso, orquestrado pelas suturas razão-desrazão e homem-pedra. O sertão continua sendo o lugar do encontro com deuses ancestrais, pedrificando-se como uma fonte perpétua de mitologizações populares.

Uma das lições aprendidas no interior da pedra é a capacidade de dizer sim à vida, apesar da aridez das mortes trágicas, da secura da alma rachada do sertanejo. Nesse rochedo de narrativas, a pedra aprisiona e adormece. Que Ariano continue trilhando esse pedregoso reino da imaginação, encastelado no canto improvisado, no folheto, no romance, nas danças populares, no espetáculo de marionetes, nas histórias sem dono.

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