Um encontro com Suassuna


Leia a seguir texto de Ricardo Barberena, publicado em Zero Hora de 7 de novembro de 2009. A foto acima é de Mauro Vieira.

A lição de Suassuna: 

a poética da humildade

 

O professor Ricardo Barberena conta os bastidores de seu recente encontro com o escritor Ariano Suassuna em Porto Alegre. Diz que o autor paraibano, criador do Auto da Compadecida, mostrou-se generoso, confiante e sincero

Como dados lançados numa vertigem de clandestinidade e descoberta, as palavras de um texto desejam encontrar um futuro leitor que possa resgatá-las de sua reversível solidão. A escritura carrega em sua corporeidade um sentimento de falta, de réplica, de deriva. Ao desejar uma mediação com o Outro, o escrever acaba se elaborando como um jogo secreto do encontro. Em outras palavras, poderíamos afirmar que escrevemos para sermos lidos. E não foi diferente quando escrevi um texto para a ZH em virtude dos 80 anos de Ariano Suassuna (intitulado O Reino Pedregoso de Suassuna, publicado em 16/06/2007). Na época de sua divulgação, o artigo possivelmente tenha encontrado gentis leitores, mas seria após dois anos de sua publicação que se daria o indivisível resgate. Ao receber o telefonema de Ariano Suassuna, deparei-me com um embaralhamento identitário: o grande escritor passava a ser o leitor do meu singelo texto.

Com uma amabilidade que não pode ser traduzida em palavras, Suassuna revelou que o meu artigo era um dos poucos que o emocionara em sua vida. Já nas suas primeiras frases, enunciadas em voz feérica, o escritor expunha a sua intenção de uma conversa mais detalhada. Nesta ocasião de rara felicidade, convidou-me para prefaciar o seu próximo romance, denominado O Jumento Sedutor. Não bastando tamanha honraria, Suassuna pediu-me “autorização” (as aspas são imperiosas) para transformar-me em um dos personagens do referido romance. Depois de alguns minutos de conversa, marcamos um encontro que se prolongaria por mais de duas horas. Com a força lírica da contação de estórias, Suassuna encantou a todos que estavam presentes na sala na qual nos reunimos. Num momento de supremo magicismo, o escritor recitou Infância, de Paulo Mendes Campos. Os olhos marejados e a voz embargada acabaram por interrompê-lo. O silêncio, embebido em sagração, fez-se necessário. Retomada a voz, Suassuna relembrou as suas idas ao futebol ao lado de João Cabral de Melo Neto. Comentou também a importância da estética cervantina na criação das suas obras. Ainda, entre tantos assuntos, Suassuna ressaltou a sua admiração diante de Simões Lopes Neto. Ironizando a sua notoriedade internacional, o escritor contou quando foi confundido com um vendedor ambulante no pátio da Universidade Federal de Pernambuco.

Afinal, qual será a grande lição que podemos tirar deste telefonema de Suassuna? Para responder essa indagação, deveríamos relembrar o poema A Pedra do Reino, de João Cabral de Melo Neto: “fantástico espaço suassuna / que ensina que o deserto funda”. Suassuna traduz a simplicidade desértica de um grande homem em dissonância com as encasteladas moradas dos ególatras e dos medalhões que permeiam uma sociedade de “homens importantes”. Na contramão aos ritos de soberba de uma mundanidade opressiva, o escritor paraibano inscreve-se numa generosidade que transporta bondade, confiança e sinceridade. Esse espaço pedregoso de Suassuna evidencia um sopro de esperança para todos nós: é possível ainda perceber a magnitude da humildade numa sociedade-espetáculo. Deparamo-nos com o verdadeiro e libertário exercício da alteridade. Desabrigando-se de possíveis guaridas da cultura letrada, Suassuna desvela uma infinita humanidade ao buscar destituir-se de vestígios de uma centricidade das belas-letras. A sublime simplicidade do escritor torna-se um impactante rebelo contra a espetacularização de pseudocelebridades massificadas. Enquanto Imperador da Pedra do Reino, o imortal Suassuna reinventa uma poeticidade cotidiana que faz brotar do sertão-osso a intersubjetividade do conversar e do ouvir o Outro.

Incansável com a sua trupe, Suassuna já proferiu mais de 30 aulas pelo interior de Pernambuco. Nesses privilegiados fóruns de discussão, o escritor navega pelas idiossincrasias da identidade cultural brasileira. Cabe ressaltar que o Movimento Armorial tem possibilitado uma reflexão mítico-simbólica relevante no tocante à migrância de imaginários plurais: a heráldica medieval, brasões ibéricos, estandartes de maracatu, bandeiras de futebol. O legado de Suassuna permite que façamos uma discussão sobre uma nacionalidade fragmentada que se apresenta imaginada a cada reinvenção de uma tradição inacabada. Essa cosmovisão estética acaba por metamorfosear uma simples mirada regionalista num memorial popular sob a égide da decifração dos narrares nacionais. A epopeia suassuniana, tecida em palavras-magma, produz constelações de um viver na pedra. Se as rochas contam a história da Terra, a escritura-fabulação de Suassuna narra uma territorialidade nacional encarnada no cordel, no teatro, no folhetim, nas iluminuras, na falação sem dono.

Há uma questão fundamental que não podemos perder de vista: a poética de Suassuna. Segundo o próprio escritor, toda a sua vasta obra descende diretamente da sua condição de poeta. É na sua capacidade de encantamento dos mitos do reino do sertão que repousa uma matéria imaginante capaz de inserir na historiografia literária uma potencialidade lírica popular: do auto nordestino às mitificações mediterrâneas. Suassuna costuma articular um pensamento que sintetiza o seu projeto literário: “O cachorro não gosta de osso, coloque um filé ao lado para comprovar. O povo brasileiro é igual. O problema é que a nossa elite apenas oferece o osso”. E é justamente aí que reside a poética suassuniana. Ao rechaçar os estereótipos da identidade nacional, o nosso Imperador da pedra-do-sonho reconstitui uma estética quixotesca, movida pelo mar de estórias da cultura brasileira. Fascinado pelo circo, Suassuana confessa que se considera um palhaço frustrado. Se o mundo circense pode ter perdido muito, por outro lado, o mundo literário ganhou um escritor que carrega no olhar a ternura de um palhaço felliniano. Que Suassuna continue nos ensinando a sua magnífica poética: a poética da humildade.



RICARDO BARBERENA *

* Doutor e pós-doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS, professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS

Nenhum comentário:

Postar um comentário